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O desfecho do emblemático Caso Pechstein e o seu legado para a arbitragem desportiva

Daniel Becker Paes Barreto Pinto, advogado, pós-graduando em Direito Público pela Fundação Getúlio Vargas, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, 1º Vice-Presidente do Comitê de Jovens Arbitralistas – CJA, do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA.

João Pedro Brígido Pinheiro da Silva, graduando em Direito pela Universidade Federal Fluminense - UFF.


Em junho de 2016, após uma longa batalha travada em diversas jurisdições, a Suprema Corte Alemã - Bundesgerichtshof proferiu decisão definitiva na midiática ação proposta pela atleta de patinação alemã Claudia Pechstein contra a Federação Internacional de Patinação - ISU, por meio da qual a pentacampeã olímpica exigia uma indenização de aproximadamente cinco milhões de euros por ter sido proibida pela federação de sua modalidade esportiva a competir[1].


Para que se compreenda melhor o cenário dessa relevante demanda, é importante realizar uma pequena digressão. Pechstein é uma patinadora velocista alemã que contabiliza cinco medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Inverno. Tamanho feito a eleva à condição de maior patinadora olímpica de todos os tempos em sua categoria, entre homens e mulheres, bem como ao posto de maior vencedora da Alemanha nas Olimpíadas de Inverno.


Em 2009, após a realização da Copa do Mundo de Patinação de Velocidade, ocorrida na Noruega, a ISU acusou Pechstein de doping sanguíneo, banindo-a de todas as competições envolvendo o esporte pelo período de dois anos. Importante lembrar que as Olimpíadas de Inverno aconteceriam em 2010 na cidade de Vancouver, o que tornava a medida contra Pechstein ainda mais gravosa, uma vez que a pena a impediria de disputar a principal competição da modalidade e da qual ela era, até então, a campeã isolada.


O fundamento técnico para a suspensão encontrava-se no excessivo nível de reticulócitos em seu sangue, o que foi detectado em mais de uma oportunidade. A patinadora, indignada, apelou ao Court of Arbitration for Sport - CAS, alegando, principalmente, que a anomalia sanguínea dava-se por conta de uma condição genética, transmitida hereditariamente por seu pai. Contudo, o CAS, em 25 de novembro de 2009, a partir da análise pericial trazida por Claudia, refutou a tese da esportista e confirmou o seu afastamento das competições. Como era de se esperar, o sucesso esportivo da atleta banida e a peculiaridade do argumento utilizado por ela para reverter a suspensão levaram o caso a receber especial destaque na mídia.


Diante da decisão do CAS, Pechstein decidiu discutir a questão na Justiça Comum, através de uma ação ingressada no Supremo Tribunal Federal da Suíça com o objetivo de anular a suspensão que havia sofrido, a fim de garantir sua participação nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2010. Entretanto, a corte suíça deu uma resposta negativa à atleta, em acórdão proferido em 10 de novembro de 2010, fixando o entendimento de que “a revisão de uma decisão arbitral é de natureza extraordinária e não tem a intenção de dar continuidade a um procedimento primário”[2].


Inconformados com mais uma decisão desfavorável, os representantes legais de Claudia optaram, então, por veicular a pretensão através do ajuizamento de uma ação perante a Justiça Alemã, requerendo, em suma, a anulação da decisão do CAS e indenização por parte da ISU pelos danos sofridos pela atleta em decorrência da suspensão que entendia ser injusta. Para que se compreenda bem, é importante transcrever trecho do formulário da federação esportiva que contém a famigerada cláusula compromissória[3]:

“I/we, the undersigned, I) accept the ISU Constitution, which establishes an ISU Disciplinary Commission (Article 24) and recognizes the Court of Arbitration for Sport (CAS), in Lausanne, Switzerland as the arbitration tribunal authorized to issue final and binding awards involving the ISU, its Members and all participants in ISU activities, excluding all recourse to ordinary courts (Articles 25 & 26);”


Surpreendentemente, o juízo de primeiro grau de Munique - Landgericht conheceu da ação, ignorando o compromisso arbitral celebrado e a sentença proferida pelos árbitros do CAS. Todavia, no mérito da decisão, proferida no dia 26 de fevereiro de 2014, o Landgericht decidiu manter o decidido pelo Tribunal Arbitral, sob o argumento de que, àquela altura, a matéria em discussão já havia formado coisa julgada, ressalvando, entretanto, que o compromisso arbitral firmado entre a patinadora e a federação era de adesão e, portanto, inválido. De acordo com a decisão[4], ficou consignado que, na hipótese de Pechstein ter arguido a invalidade do compromisso em momento anterior, teria sido possível acatar a sua tese.


Aproveitando a brecha aberta pela decisão da primeira instância, Pechstein apresentou recurso à corte regional de Munique - Oberlandesgericht[5]. O resultado foi ainda mais impremeditado. A corte superior entendeu que (i) o compromisso arbitral firmado entre as partes era nulo, e (ii) a sentença arbitral prolatada pelo CAS não era válida na Alemanha, pois a representava violação à ordem pública do país[6].


Em relação ao primeiro ponto da decisão, os julgadores interpretaram que o simples requerimento da ISU à atleta para que ela assinasse o compromisso de arbitragem não constituiria, por si só, abuso de poder de mercado. Não obstante, a análise particular do caso fez com que os juízes percebessem um monopólio da Federação Internacional de Patinação no âmbito da patinação no gelo. Isso porque, durante o processo de seleção dos árbitros que viriam a compor o CAS, foi verificada uma baixíssima influência dos atletas na composição da corte de arbitragem. Conforme entendimento exarado pela corte, as federações e associações nacionais de esportes seriam as únicas com poder de apontar os árbitros, o que, segundo o Oberlandesgericht, produzia ausência de segurança jurídica e de equidade na tomada de decisões.


Questão curiosa diz respeito à validade ou não da decisão do CAS na jurisdição alemã. Enquanto a primeira instância de Munique reconheceu a plausibilidade jurídica do que foi decidido pelos árbitros, a corte de apelações teve visão diferente, afastando por completo a jurisdição do CAS. A razão para isso, como mencionado, seria uma suposta violação de normas de ordem pública por parte do corte esportiva, especialmente a Seção V, 2, “b”, da Convenção de Nova Iorque[7], abaixo transcrita.


‘’Artigo V (...)

2. O reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral também poderão ser recusados caso a autoridade competente do país em que se tenciona o reconhecimento e a execução constatar que: (...)

b) o reconhecimento ou a execução da sentença seria contrário à ordem pública daquele país.”


Por sua vez, a suposta violação à ordem pública interna teria como base o direito concorrencial alemão, especificamente o parágrafo 19, item 2, ‘5’, da Lei Alemã Contra Atos que Restrinjam a Competição, o qual prevê[8]:

Ҥ 19

Condutas proibidas em empreendimentos

(1) O abuso da posição dominante por um ou diversos empreendimentos é interditado.

(2) Um abuso existe, em particular, se a posição dominante na relação, como fornecedor ou consumidor de um certo bem ou serviço:

5. usa seu poder de mercado para causar danos ou criar desvantagens a outros sem qualquer objetivo ou justificação.”

(tradução livre)


Desse modo, o reconhecimento da sentença obtida na arbitragem implicaria uma aceitação implícita da atividade concorrencial ilegal da ISU, que teria se valido abusivamente do seu poder dominante no mercado para colocar a atleta em desvantagem na relação jurídica que firmaram. Essa conduta é proibida pelo dispositivo supracitado. Por fim, de maneira generalista, o OLG de Munique chegou a mencionar o aspecto constitucional da questão, tangente a um direito fundamental da atleta de não ser privada da prestação jurisdicional do Estado, previsto no art. 103 da Lei Fundamental germânica[9].


O precedente chegou a ser considerado como o início de uma revolução na arbitragem esportiva internacional[10]. A esse respeito, vale conferir a manifestação do jornal francês Le Monde ao mencionar o caso de Pechstein:

“Em novembro de 2009, o CAS confirmou a primeira suspensão em matéria de dopagem a partir do exame de sangue no caso da patinadora velocista Claudia Pechstein. Entretanto, a atleta, que sempre negou o doping, obteve uma importante vitória jurídica perante o tribunal de Munique, que permitiu que Claudia ajuizasse uma ação contra a Federação Internacional de Patinação. Essa interpretação, que é contrária ao decidido pelo Tribunal Arbitral do Esporte, constitui uma brecha que outros atletas poderiam utilizar para contestar decisões arbitrais perante tribunais civis.”[11] (tradução livre)


Contudo, após recurso da federação para a Corte Constitucional Alemã, as decisões anteriores foram reformadas[12] e, de maneira bastante coerente, a ação de Pechstein foi declarada inadmissível, tendo em vista a existência de cláusula compromissória de arbitragem firmada pelas partes[13].


No mérito, o julgado reconheceu o CAS como competente para a resolução do litígio entre a atleta e a federação internacional de patinação. Segundo os ministros votantes, o compromisso arbitral fixado entre as partes era válido e, embora a federação exercesse um monopólio no mercado em questão, essa posição dominante não foi exercida pela instituição no momento da celebração da cláusula compromissória. Portanto, o termo de compromisso arbitral mereceria ser respeitado, sendo impossível a sua decretação de nulidade.


Consequentemente, não tendo sido a posição de dominação verificada na prática, não se pode dizer que as leis alemãs que constituem normas de ordem pública foram violadas, de modo que a jurisdição do CAS seria absolutamente lícita. Nesse caso, a verdadeira afronta jurídica estaria em colocar em xeque a possibilidade de utilização da arbitragem para dirimir disputas esportivas.


No que toca à desconsideração da natureza adesiva do contrato, aceita pelo juiz de primeira instância, a Corte Suprema fixou que não se pode aplicar a mesma lógica de contratos de adesão para contratantes de diferentes origens. Assim, um atleta não deve ser, de modo automático, equiparado a um consumidor hipossuficiente, por exemplo, haja vista tratar-se de outro microssistema jurídico que é o direito desportivo.


É de se ressaltar, também, que Pechstein jamais levou ao CAS os argumentos de dominância de mercado e invalidade do compromisso arbitral por conta da cláusula compromissória supostamente firmada por adesão. Segundo o documento expedido pelo CAS, a postura do Tribunal de Apelações de Munique, invalidando termos de compromisso arbitrais sem que isso tenha sido previamente discutido pelo Tribunal Arbitral, compromete um dos mais básicos princípios da arbitragem internacional, o Kompetenz-Kompetenz.


Fica claro, dessa forma, que, embora o desfecho para a disputa tenha sido bastante jurídico, a arbitragem desportiva sofreu um abalo institucional. Não só por conta das invasivas decisões do Poder Judiciário alemão, mas também porque, após a decisão do Bundesgerichtshof, o próprio CAS retratou-se, sutilmente, afirmando que estava sempre pronto para evoluir e rever a forma de composição do International Council of Arbitration for Sport – ICAS[14] a fim de torná-lo mais inclusivo para os atletas[15].




[1] RUIZ, REBECCA R. Sports Arbitration Court Ruling Against German Speedskater Claudia Pechstein Is Upheld. The New York Times. Disponível em: http://www.nytimes.com/2016/06/08/sports/sports-arbitration-court-ruling-against-german-speedskater-claudia-pechstein-is-upheld.html?_r=0 - Acesso em 20.08.16


[2] Bundesgericht 4A_612/2009 - Decisão disponível em: http://relevancy.bger.ch/php/aza/http/index.php?lang=de&zoom=&type=show_document&highlight_docid=aza%3A%2F%2F10-02-2010-4A_612-2009# ; Acesso em 30.08.16


[3] Disponível em http://www.isu.org/en/speed-skating/forms - Acesso em 10.06.16


[4] LG München I, 26.02.2014, Az: 37 O 28331/12, Urteil, Disponível em: http://www.dis-arb.de/de/47/datenbanken/rspr/lg-m%C3%BCnchen-az-37-o-28331-12-datum-2014-02-26-id1585 - Acesso em 23.08.16


[5] OLG München, 15.01.2015, U 1110/14. Disponível em: http://www.gesetze-bayern.de/Content/Document/Y-300-Z-BECKRS-B-2015-N-02086?hl=true&AspxAutoDetectCookieSupport=1 - Acesso em: 23.08.16


[6] BERT, Peter. Sports Arbitration – Munich Court of Appeals Does Not Recognize CAS Arbitral Award in Pechstein Case. Dispute Resolution in Germany. Disponível em: http://www.disputeresolutiongermany.com/2015/01/sports-arbitration-munich-court-of-appeals-does-not-recognize-cas-arbitral-award-in-pechstein-case/ - Acesso em 17.08.16.


[7] A Convenção de Nova Yorque possui previsão expressa de aplicação no artigo 1061 do Código de Processo Civil Alemão – Zivilprozessordnung.


[8] Ҥ 19 Prohibited Conduct of Dominant Undertakings

(1) The abuse of a dominant position by one or several undertakings is prohibited.

(2) An abuse exists in particular if a dominant undertaking as a supplier or purchaser of a certain

type of goods or commercial services

5. uses its market position to invite or cause other undertakings to grant it advantages

without any objective justification”. Disponível em: http://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Publikation/EN/Others/GWB.pdf?__blob=publicationFile&v=3. Acesso em: 22/08/2016.


[9] “Artigo 103 [Direitos fundamentais perante os tribunais]

(1) Perante o tribunal, todos têm o direito de ser ouvido.

(2) Um fato somente pode ser punido, se a punibilidade foi estabelecida por lei antes de seu cometimento.

(3) Ninguém pode ser punido mais de uma vez pelo mesmo fato, com base no direito penal comum.” Disponível em português em: http://www.brasil.diplo.de/contentblob/3160404/Daten/1330556/Gundgesetz_pt.pdf - Acesso em 21.08.2016.


[10] SPIEGEL ONLINE SPORT. Pechstein-Urteil: "Revolution für die Sportwelt". Disponível em: http://www.spiegel.de/sport/wintersport/athletenvereinbarung-urteil-zu-pechstein-sorgt-fuer-wirbel-a-955805.html . Acesso em 16.08.16


[11] “En novembre 2009, le TAS a confirmé la première suspension en matière de dopage à partir de l’examen d’un passeport sanguin dans le cas de la patineuse de vitesse allemande Claudia Pechstein. Tenace, cette dernière, qui a toujours nié le dopage, a cependant obtenu en janvier une victoire juridique devant le tribunal de Munich, qui lui permet d’intenter une poursuite en dommages contre l’ISU, la Fédération internationale de patinage. Ce jugement, qui vient à l’encontre de celui rendu par le Tribunal arbitral du sport, constitue une brèche que d’autres athlètes pourraient utiliser pour contester devant des juridictions civiles des décisions du TAS”. Disponível em http://www.lemonde.fr/football/article/2015/12/08/fifa-tas-mode-d-emploi_4827122_1616938.html - Acesso em 22.08.16


[12] BHG 07/06/2016, KZR 6/15. Disponível em: http://www.rechtsprechung-im-internet.de/jportal/portal/t/19ke/page/bsjrsprod.psml?pid=Dokumentanzeige&showdoccase=1&js_peid=Trefferliste&documentnumber=1&numberofresults=10908&fromdoctodoc=yes&doc.id=KORE300902016&doc.part=L&doc.price=0.0&doc.hl=1#focuspoint - Acesso em 23.08.16


[13] BERT, Peter. Sports Arbitration: Federal Supreme Court Finds Against Pechstein, Upholds CAS Arbitration Agreement. Dispute Resolution in Germany. Disponível em: http://www.disputeresolutiongermany.com/2016/06/sports-arbitration-federal-supreme-court-finds-against-pechstein-upholds-cas-arbitration-agreement/#more-5275 - Acesso em 17.08.16.


[14] O ICAS tem como objetivo facilitar a resolução de conflitos vinculados ao esporte por meio da mediação e da arbitragem, exercendo poder administrativo, regulador e auxiliador perante o Tribunal Arbitral do Esporte. A edição de regulamentos, a eleição da lista de árbitros que compõem o CAS e outras importantes funções financeiras e políticas são alguns exemplos de atribuições do ICAS.


[15] “The CAS is active in almost all countries around the world and adapting its system and procedures to accommodate each national jurisdiction is not feasible. It is always prepared to listen and analyze the requests and suggestions of its potential users i.e. the athletes, sports federations and other sports entities, in order to continue its development with appropriate reforms. However, such consultation must be independent of individual interests related to an existing dispute. The CAS will continue to improve and evolve with changes in international sport and best practices in international arbitration law.” Disponível em http://www.tas-cas.org/fileadmin/user_upload/CAS_statement_ENGLISH.pdf - Acesso em 19.08.16


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