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Arbitragem societária no Brasil e nos Estados Unidos: uma questão cultural?

Hester Peirce, comissária da Securities and Exchange Commission (“SEC”), defendeu a arbitragem societária mandatória em um recente discurso, proferido durante o encontro anual do Council of Institutional Investors (“CII”), que ocorreu no dia 5 de março de 2019, em Washington.[1] A advogada, que é conhecida como ‘Crypto Mom’, por suas visões liberais para com criptomoedas, criticou a postura que muitos investidores têm hoje em dia: concentrar-se em assuntos que não têm a ver com investimento. Segundo ela, a SEC está cada vez mais sendo solicitada a focar-se em questões que não consistem em avaliar como as companhias estão utilizando o dinheiro do investidor. Como exemplo, ela citou a carta do CII que criticava a proposta de um acionista da Johnson & Johnson (“J&J”) que, se aprovada, definiria que o sistema de resolução de disputas entre acionistas da Companhia poderia ser a arbitragem obrigatória. Entre outros pontos, o CII criticou a natureza confidencial desse sistema e declarou que ele privaria os acionistas do amplo leque de opções que teriam caso levassem suas suspeitas ao Poder Judiciário; além de privá-los do direito de ajuizar class actions.

Destarte, a comissária alegou que as class actions raramente são decididas no mérito. O custo delas é tão alto que as partes acabam optando por fechar acordos que geralmente não são publicados. Segundo ela, essa litigância diminui o valor das ações e os acionistas não envolvidos nem sequer ficam sabendo o que aconteceu.

Peirce deixou claro que não necessariamente defende a arbitragem mandatória para todas as companhias, mas sinalizou que métodos alternativos de resolução de conflitos devem ser mais utilizados, com o fulcro de desafogar a atuação da SEC, cujas regras permitem solicitações esdrúxulas de acionistas. Além disso, se certas companhias aderirem à arbitragem obrigatória, os acionistas que dão valor ao direito à jurisdição podem simplesmente aplicar o seu dinheiro em outro lugar.

Porém, esta visão não é compartilhada por seus pares. Por exemplo, o Investor Advocate[2] da SEC, Rick Fleming, afirmou, em um discurso intitulado “Mandatory Arbitration: An Illusory Remedy for Public Company Shareholders”[3], que privar o investidor da possibilidade de levar conflitos aos Judiciário é “draconiano”. O Comissário Robert J. Jackson Jr. compartilha de uma visão similar[4] e o presidente da SEC, por sua vez, insiste em evitar o tema.

Apesar de Peirce ter tocado em outros assuntos durante a sua apresentação na conferência do CCI, a questão da arbitragem mandatória foi o que mais chamou atenção da mídia e da comunidade jurídica. A SEC nunca de fato permitiu a possibilidade de arbitragem obrigatória, mas o tema está sempre voltando à pauta[5].

A esse respeito, iniciou-se, atualmente, nos EUA, uma campanha articulada por grupos de estudantes de direito e que chegou até congressistas democratas, na qual os participantes empenham-se em acabar com a arbitragem trabalhista obrigatória, pois, supostamente, ela estaria sendo usada para acobertar casos de abuso sexual no local de trabalho[6].

No caso em questão, o acionista da J&J que enviou a solicitação para a SEC era Hal Scott, um professor emérito de Harvard entusiasta da arbitragem. Ele estava testando a postura do regulador para com o instituto. O staff da área de finanças corporativas da SEC comunicou à companhia que não tomaria nenhuma providência se fosse adicionada uma cláusula que não permitisse ao acionista ajuizar ação na Justiça. Foi essa postura do regulador, cada vez menos agressivo para com a arbitragem, que fez com que diferentes grupos, como o CII, perdessem a confiança na SEC quanto ao assunto e passassem a advogar mais ferrenhamente e por conta própria[7].

Toda essa discussão chama a atenção para o fato de que o mercado de capitais norte-americano é o maior e mais atrativo do mundo, apesar de não ter arbitragem; enquanto o mercado brasileiro, de outro lado, ainda é incipiente, mesmo com a arbitragem sendo considerada (i) um sinônimo de alto padrão de governança corporativa, (ii) o método de resolução de conflitos mais popular para controvérsias de direito empresarial e (iii) obrigatória em alguns segmentos da Bolsa de Valores.

Discutiremos abaixo algumas das razões pelas quais a cultura da arbitragem societária encontra-se difundida no Brasil, mas não na América.

Arbitragem e Direito Societário nos EUA

Muitos são os motivos que levam os Estados Unidos a ter uma visão ruim da arbitragem societária obrigatória. Primeiramente, vale destacar que o país não tem uma visão ruim da arbitragem em si. Pelo contrário, o país é um dos mais avançados do mundo em relação a esse método de resolução de controvérsias. É a obrigatoriedade no âmbito das companhias abertas que gera debates.

E a explicação mais provável para isso é muito simples: Delaware[8]. Esse estado da costa leste – o segundo menor do país – é o mais avançado em Direito Societário nos Estados Unidos, o que o torna atrativo para grandes empresas: 65% das companhias da Fortune 500 e mais de metade de todas as companhias abertas do país[9], o que resulta em mais de 1 milhão, o que é superior ao número de habitantes do local. A dominância desse estado está representada na Lei Societária, nos tribunais, tradição jurídica e no case law.

O Delaware General Corporation Law (“DGCL”) é, ao mesmo tempo, uma lei que oferece previsibilidade e permissibilidade. Os investidores têm seus direitos principais resguardados, mas as companhias também gozam de bastante liberdade para criar suas próprias regras.

Os casos societários de Delaware nunca são julgados por júris populares, apenas por juízes profissionais. Os juízes de todos os tribunais do estado, que vêm desenvolvendo a interpretação da DGCL há mais de um século, são apontados em virtude de sua expertise em Direito Societário. Além disso, o número de advogados especializados no Direito das Companhias de Delaware é muito grande.

Dessa forma, em virtude de os Estados Unidos serem um país de tradição jurídica de common law, a união entre Cortes e advogados especializados e uma Lei permissiva, permitiu, ao longo dos anos, o desenvolvimento de um case law que atrai inúmeras companhias ao Estado.

Como o leitor já percebeu, não seria possível a construção de um case law arbitral: os procedimentos sigilosos não permitiriam. E os americanos têm receio, por assim dizer, de um procedimento em que não se é possível ter nenhum tipo de previsibilidade e não existem recursos. Esse é, inclusive, o principal argumento da carta que o Council of Institutional Investors enviou à SEC.

A arbitragem societária no Brasil

O Brasil, por outro lado, mostrou, ao longo dos últimos anos, um avanço muito grande no que concerne ao instituto da arbitragem. Seja pela quantidade de congressos e eventos, seja conforme os números coletados pela Professora Selma Lemes[10], o país mostra estar adquirindo, desde a declaração da constitucionalidade da Lei de Arbitragem pelo STF, em 2001, uma forte cultura arbitral.

No que concerne à arbitragem societária, houve, após recente celeuma acerca da cláusula compromissória estatutária, grandes avanços. Segundo a Lei das Sociedades por Ações, companhias podem ter cláusulas compromissórias de arbitragem em seus estatutos desde 2001 (art. 109, §3° da Lei 6.404/1976), facultando ao acionista dissidente o direito de retirada (art. 136-A da mesma lei).

As disposições da Bolsa de Valores são ainda mais rígidas do que as das leis que regem o Mercado. Nos segmentos de listagem mais altos, as companhias adotam, de maneira voluntária, as mais altas práticas de governança corporativa, seguindo o modelo “aplique ou explique”. Nesse sentido, a B3 dispõe de sua própria câmara arbitral, a Câmara de Arbitragem do Mercado (“CAM”), cuja adesão é obrigatória para as companhias que fazem parte do Novo Mercado, do Nível 2 das Práticas Diferenciadas de Governança Corporativa e do Bovespa Mais.

O Novo Mercado, inspirado no Neuer Markt da Deutschen Börse, foi idealizado pelo advogado Luiz Leonardo Cantidiano (in memoriam). Ele afirmava que as regras e as boas práticas de governança corporativa só teriam eficácia se as companhias aderissem à arbitragem, pois deve haver uma forma de exigir que a boa governança seja praticada[11]. Isso contribuiu fortemente para a atual aceitação da arbitragem no meio empresarial.

A arbitragem societária é necessária no Brasil porque o Judiciário é ruim; é lento e imprevisível – ou, de uma maneira bem direta, porque não temos uma Delaware.

No que concerne arbitragem e aos casos societários, as decisões judiciais, fora do eixo Rio-São Paulo, muitas vezes são sem nexo e atécnicas, pois os juízes carecem de expertise na área. O próprio ensino do Direito no país, salvo raríssimas exceções, é indiferente quanto ao ensino da arbitragem e de questões como finanças, por exemplo. Por esses motivos, fica evidente por que os homens de negócios, no Brasil, abraçaram a cultura arbitral.

Conclusão

A falta de arbitragem nas companhias abertas americanas não é necessariamente ruim. Apesar de recorrerem ao Judiciário, muitas vezes por meio de class actions, eles ainda possuem o maior e mais atrativo Mercado do mundo (eles têm Delaware, afinal). Mas, conforme a fala da comissária Hester Peirce, no último encontro anual do CII, a arbitragem mandatória não deveria ser proibida nas Companhias que, por deliberação, a aprovassem.

No Brasil, porém, a arbitragem mandatória mostra-se, muitas vezes, necessária, por conta do Judiciário despreparado para casos envolvendo temas complexos do mundo corporativo. Além disso, o número de companhias listadas na B3 é muito pequeno quando comparado às bolsas dos EUA: algumas centenas contra dezenas de milhares. A porcentagem da população investidora também é muito diferente nos dois países, por uma questão cultural de educação financeira. Por esses motivos, criar uma câmara de arbitragem como a CAM, que tem uma lista fechada de árbitros, seria, no contexto americano, ao menos impraticável.

Conclui-se que nenhuma jurisdição precisa imitar a outra. Cada realidade possui um contexto diferente. No caso do Brasil, a arbitragem é um mecanismo necessário para atrair investidores, mas ela não é o único fator a ser considerado para o desenvolvimento de um mercado de capitais. Há muitos outros fatores a ser considerados.

[1] Órgão da American Bar Association responsável por discutir questões legais, regulatórias e de compliance relevantes a investidores institucionais, no que tange à gestão de seus investimentos.

[2] O Investor Advocate comanda o Office of the Investor Advocate da SEC, um órgão que foi criado para representar o público investidor dentro da Comissão.

[3] Fleming, Rick. “Mandatory Arbitration: An Illusory Remedy for Public Company Shareholders”. Discurso proferido no PLI’s The SEC Speaks in 2018. Washington D.C., 24/2/2018. Disponível em: https://www.sec.gov/news/speech/fleming-sec-speaks-mandatory-arbitration. Acesso em: 19/3/2019.

[4] Jackson Jr., Robert J. “Speech Keeping Shareholders on the Beat: A Call for a Considered Conversation About Mandatory Arbitration”. Discurso proferido no CECP CEO Investor Forum. Nova York – NY, 26/2/2018. Disponível em: https://www.sec.gov/news/speech/jackson-shareholders-conversation-about-mandatory-arbitration-022618 Acesso em: 19/3/2019.

[5] Bain, Bejamin. “Why Mad Shareholders May No Longer Get a Day in Court”. Bloomberg, 2/3/2018. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-03-02/why-mad-shareholders-may-no-longer-get-a-day-in-court-quicktake Acesso em: 19/3/2019.

[6] Toutant, Charles. “Hank Johnson, Other Dems Launch Effort to Bar Mandatory Arbitration in Disputes”. Daily Report – Law.com, 28/2/2019. Disponível em: https://www.law.com/dailyreportonline/2019/02/28/democrats-launch-effort-to-bar-mandatory-arbitration-in-disputes-404-26958/ Acesso em: 19/3/2019.

[7] Frankel, Alison. “SEC commissioner Peirce signals shareholder arbitration is not dead yet”. Bloomberg, 8/3/2019. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-otc-arbitration/sec-commissioner-peirce-signals-shareholder-arbitration-is-not-dead-yet-idUSKBN1QP2DY Acesso em: 19/3/2019.

[8] HBS, “Why Delaware Corporate Law Matters So Much”. Delawareinc.com, 24/7/2017. Disponível em: https://www.delawareinc.com/blog/why-delaware-corporate-law-matters-so-much/ Acesso em: 20/3/2019.

[9] Idem.

[10] Lemes, Selma. “Pesquisa - 2018 Arbitragem em Números e Valores. Seis Câmaras. 8 anos.”. Disponível em: http://selmalemes.adv.br/artigos/An%C3%A1lise-%20Pesquisa-%20Arbitragens%20Ns.%20e%20Valores-%202010%20a%202017%20-final.pdf. Acesso em: 20/3/2019.

[11] CANTIDIANO, Luiz Leonardo. Arbitragem: Por que mudar o que funciona bem no mercado? Capital Aberto. Disponível em: <https://capitalaberto.com.br/temas/legislacao-e-regulamentacao/arbitragem-por-que-mudar-o-que-funciona-bem-no-mercado/#.WgHUpltSyUl.> apud Kozlowski, Leonardo e Schirmer, Roberto. “A adesão à arbitragem como instrumento de governança corporativa nos segmentos especiais de listagem da B3”. Blog do CJA, 10/11/2017. Disponível em: https://cjarbitralistas.wixsite.com/cjarbitralistas/single-post/2017/11/10/A-ades%C3%A3o-%C3%A0-arbitragem-como-instrumento-de-governan%C3%A7a-corporativa-nos-segmentos-especiais-de-listagem-da-B3 Acesso em: 20/3/2019.

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