O Projeto de Lei nº 5.511/16: ameaça às plataformas de online dispute resolution (ODR) [1]
- Daniel Becker e Letícia Spada
- 6 de nov. de 2017
- 8 min de leitura
Daniel Becker[2] e Letícia Spada[3]
O Projeto de Lei nº 5.511/2016[4], apresentado pelo deputado José Mentor em junho de 2016, tem como objetivo tornar obrigatória a participação de advogado em todas as etapas da solução consensual de conflitos, precisamente a conciliação e mediação, acrescentando, para tanto, um parágrafo ao artigo 2º do Estatuto da Advocacia[5]. A motivação do projeto, segundo o relator Wadih Damous, pauta-se, quase que exclusivamente, no mito falacioso de que a ausência de um advogado traria prejuízos à parte. O projeto, já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), agora segue para análise do Senado.
Com o devido acatamento, o projeto de lei representa um verdadeiro retrocesso para a sociedade e implode as fundações dos métodos alternativos resolução de controvérsias (ADR), partindo de premissas extremamente equivocadas, os quais serão analisadas daqui em diante por meio da ótica do acesso à justiça, com dados sobre a lotação do Poder Judiciário, e da evolução dos métodos alternativos de resolução de disputas online.
A primeira delas, que se encontra na justificação de motivos do projeto, é que ali se demonstra não saber a diferença entre acesso ao Poder Judiciário e acesso à justiça. Este prefere aquele e não envolve não apenas o acesso aos órgãos do Poder Judiciário, mas também o amplo acesso da população à informação jurídica e a tutela dos direitos subjetivos, a qual, deve prestigiar outros meios de pacificação social e de solução de conflitos[6]. Com as inevitáveis mazelas que envolvem um processo judicial em qualquer lugar do mundo,i.e. custos, lentidão burocrática e assimetria de informação, a concretização do acesso à justiça deve ocorrer também fora dos tribunais judiciais.
Nesse sentido, além da conscientização da sociedade acerca dos seus direitos, os métodos ADR - os quais são considerados construtivos, enquanto os métodos adversariais são tidos como destrutivos[7] - possuem especial relevância e já têm se mostrado importantes aliados na efetivação do acesso à justiça.
Como consequência direta da imposição da presença de advogados para soluções extrajudiciais, há uma majoração considerável das despesas envolvidas nestes procedimentos. Isso implica também no aumento dos custos de transação para qualquer contrato comercial[8], uma vez que as despesas com advogados acabarão por ser precificadas e incluídas na equação econômico-financeira desses instrumentos[9].
Deve ser citado, ainda, a ressalva que foi feita ao projeto de lei e a comparação com a Justiça do Trabalho[10], onde não é obrigatória a presença de um advogado, mostrando, mais uma vez, a teratologia que macula o projeto. Na Justiça do Trabalho, de acordo com o artigo 791 da Consolidação das Leis Trabalhistas[11], empregados e empregadores podem litigar sem a presença de advogados.
No mesmo sentido, nos Juizados Especiais, de acordo com a Lei nº 9.099/95, qualquer pessoa capaz pode ajuizar ações, sem intermediação de um advogado, desde que o seu valor não exceda vinte salários mínimos[12]. A microempresa, inclusive, também pode demandar num Juizado Especial, conforme autorizado pela Lei nº 9.841/99[13].
Para que fique bem claro a esquizofrenia que a aprovação do projeto criaria no nosso sistema jurídico, vale fazer uma comparação simples, porém reveladora. Enquanto não há necessidade de advogado para apresentar reclamação trabalhista com inúmeras verbas secundárias e legislação extremamente fragmentada, ou ajuizar ação perante os Juizados Especiais com um valor que representa vinte vezes o salário mínimo do país, a lei exigirá a presença de um advogado para um divórcio consensual no qual as partes optem por realizar uma mediação a fim de obterem o melhor resultado no procedimento de separação.
Com a expansão da proteção dos direitos das minorias, assim como dos direitos do consumidor, houve uma explosão de demandas judiciais, criando-se a chamada cultura da sociedade litigiosa[14], que atravanca a máquina judiciária. Os litígios envolvendo o direito do consumidor, que, na maior parte das vezes, têm como pano de fundo questões de fato e de direito extremamente simples[15], representam uma grande fatia do acervo judiciário, o qual já representa um custo de 1,3% do PIB[16]. Para se ter uma ideia, em que pesem as inúmeras iniciativas de divulgação e uso de métodos ADR[17], no período de 2006 a 2012, o número de processos envolvendo questões de consumo quadruplicou no Supremo Tribunal Federal, conforme apontou estudo da Fundação Getúlio Vargas[18].
Em entrevista para o sítio eletrônico Consultor Jurídico, o Ministro Luis Felipe Salomão afirmou, em relação às empresas, que “as empresas estão acomodadas. Os grandes litigantes do Judiciário estão acomodados porque transferiram o seu call center para a Justiça”. Mais a frente, o Ministro arremata finalizando que “deve ser mais barato deixar acionar o Judiciário do que manter um call center que efetivamente resolva os problemas. Virou uma indústria em que muitos ganham dinheiro”[19].
O sistema já está em franco colapso. Não há orçamento e estrutura no Poder Judiciário e nem mão de obra suficiente na advocacia e nas Defensorias Públicas do país para administrar o volume massivo dessas disputas corriqueiras que chegam a cada minuto nos tribunais. A conjuntura atual impede que a máxima constitucional do acesso à justiça seja alcançada; é preciso que aja uma ruptura no ambiente de resolução de disputas[20].
Diante dessa franca necessidade, surge o método ADR conhecido como Online Dispute Resolution (ODR), o qual representa o casamento da tecnologia da informação com a resolução de disputas fora do ambiente do Poder Judiciário, unindo elementos de métodos ADR offline a fim de facilitar o acesso à justiça e garantir celeridade na prestação jurisdicional. Não há qualquer dúvida: da desconstrução do culto ao espetáculo da discórdia para construção do culto ao diálogo, o próximo passo da resolução de disputas é a sua informatização, a forma avançada de solucioná-las.
Apenas a título de exemplificação e para se demonstrar o potencial disruptivo dos métodos ODR, é interessante olharmos para o caso do eBay, a famosa plataforma americana de compra e venda que foi pioneira nessa solução. O sistema de resolução de disputas em sua plataforma permite que, a custo zero, compradores e vendedores insatisfeitos abram reclamações. Por meio de algoritmos, o software guia os usuários a fim de ajudá-los a alcançar uma solução amigável. Além do método exclusivamente autocompositivo sem a intervenção de um terceiro, o sistema oferece, ainda, a opção da contratação de um mediador no ambiente virtual pela singela quantia de US$ 15,00, sendo o restante dos custos subsidiado pelo eBay[21].Atualmente, a ferramenta recebe por volta de 60 milhões de disputas por ano, o que seria inimaginável para qualquer órgão do Poder Judiciário no Brasil ou no mundo[22].
No Brasil, o ambiente de lawtechs, empresas de tecnologia focadas no mercado jurídico, que prestam serviços de ODR já está bastante aquecido com mais de dez produtos no mercado funcionando para trazer acesso à justiça sem que as pessoas precisem sair da frente de seu computador[23]. Para se ter uma ideia, segundo o estudo “Justiça em Números 2017” do Conselho Nacional da Justiça, houve acordo apenas em 12% dos processos judiciais. Nos Juizados Especiais Cíveis, esse número chega somente a 16%, o que deixa claro que não só o Judiciário, como também advogados, não são eficazes para pacificar a sociedade[24]. Contudo, conforme dados apresentados pela lawtech Acordo Fechado, em conflitos envolvendo empresas telefônicas, companhias aéreas e planos de saúde, o êxito nos acordos chega até 80%[25].
Contudo, a aprovação do projeto ora comentado, representaria um obstáculo para a utilização dessas plataformas, pois tornaria inviável que um consumidor lesado, por exemplo, buscasse a mediação ou conciliação online de forma rápida e dinâmica. Pelo contrário, exigiria que ele, de forma anacrônica, buscasse um advogado para que este lhe auxiliasse no procedimento que, por definição, foi construído para ser simples e prático.
A maior parte dos brasileiros não possui acesso a um advogado e está impossibilitada de recorrer a Defensoria Pública, seja pela distância da unidade mais próxima ou pelo volume de casos que ela está sujeita. Inchar a quantidade de atos privativos da advocacia em nome de uma aparente reserva de mercado e em detrimento do acesso à justiça da sociedade, nos parece extremamente responsável. As consequências da aprovação do Projeto de Lei nº 5.511/2016 são difíceis de se predizes com precisão, mas, sem dúvidas, não trarão benefício algum para sociedade e muito menos para os advogados que deverão praticar preços cada vez mais baixos para atender a demanda artificial que será criada por essa iniciativa do Poder Legislativo.[U1]
[1] Artigo originalmente publicado no portal LEX MACHINAE. BECKER, Daniel; SPADA, Letícia. O Projeto de Lei nº 5.511/16: ameaça às plataformas de online dispute resolution (ODR). LEX MACHINAE. Disponível em: http://www.lexmachinae.com/2017/11/05/o-projeto-de-lei-no-5-51116-ameaca-as-plataformas-de-online-dispute-resolution-odr/ - Acesso em 06 de nov. 2017.
[2] Daniel Becker. Advogado, pós-graduando em Direito Público pela FGV Direito Rio, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Diretor de Novas Tecnologias do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA, Membro da Sillicon Valley Arbitration and Mediation Center – SVAMC, Co-fundador do portal LEX MACHINAE.
[3] Leticia Spada. Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UELO.
[4] BRASIL. Projeto de Lei nº 5511/2016. Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2087302 – Acesso em 19 de out. 2017.
[5] “Art. 2º (...) § 4º É obrigatória a participação do advogado na solução consensual de conflitos, tais como a conciliação e a mediação.”
[6] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 12-16.
[7] DEUTSCH, Morton. The Resolution of Conflict: Constructive and Destructive Processes. New Haven: Yale University Press, 1973.
[8] COASE, Ronald. The problem of social cost. Journal of Law and Economics, v.3, p. 1-44, 1960.
[9] GICO JR., Ivo. Introdução ao Direito e Economia. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e Economia no Brasil. São Paulo: Editora Atlas, 2012, p. 20.
[10]BRASIL. Projeto de Lei nº 5511/2016: Complementação de Voto do Sr. Deputado Wadih Damous. Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1599193&filename=Parecer-CCJC-19-09-2017 – Acesso em 19 de out. 2017.
[11] “Art. 791 - Os empregados e os empregadores poderão reclamar pessoalmente perante a Justiça do Trabalho e acompanhar as suas reclamações até o final.”
[12] “Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória.”
[13] “Art. 74. Aplica-se às microempresas e às empresas de pequeno porte de que trata esta Lei Complementar o disposto no § 1º do art. 8º da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, e no inciso I do caput do art. 6º da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, as quais, assim como as pessoas físicas capazes, passam a ser admitidas como proponentes de ação perante o Juizado Especial, excluídos os cessionários de direito de pessoas jurídicas.”
[14] LIEBERMAN, J. K. The litigious society. New York: Basic Books, 1983.
[15] FLÁVIO DE OLIVEIRA, Amanda. Garantias do consumo: Em seus 25 anos, Código de Defesa do Consumidor ampliou acervo do Judiciário. Consultor Jurídico. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-fev-03/garantias-consumo-25-anos-cdc-ampliou-acervo-judiciario – Acesso em 29 de out. 2017.
[16] VASCONCELLOS, Fábio. Na relação com o PIB, Judiciário brasileiro custa quatro vezes o registrado na Alemanha. O Globo. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/na-base-dos-dados/post/custo-relativo-ao-pib-do-judiciario-brasileiro-e-quatro-vezes-o-registrado-na-alemanha.html - Acesso em 29 de out. 2017.
[17] A título de exemplificação, ver Resolução CNJ nº 125, de 29 de novembro de 2010.
[18] VALOR ECONÔMICO. Supremo em Números mostra explosão de ações de consumidor. Valor Econômico: Legislação. Disponível em http://www.valor.com.br/legislacao/3243360/supremo-em-numeros-mostra-explosao-de-acoes-de-consumidor – Acesso em 29 de out. 2017.
[19] HAIDAR, Rodrigo. “Empresas transferiram seu call center para o Judiciário”. Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jan-06/entrevista-luis-felipe-salomao-ministro-superior-tribunal-justica - Acesso em 29 de out. 2017.
[20] BECKER, Daniel; LAMEIRÃO, Pedro. Online Dispute Resolution (ODR) e a ruptura no ecossistema da resolução de disputas. Disponível em: http://www.lexmachinae.com/2017/08/22/online-dispute-resolution-odr-e-a-ruptura-no-ecossistema-da-resolucao-de-disputas/ – Acesso em: 19 de out. 2017.
[21] KATSH, Ethan; RABINOVIC-EINY, Orna. Digital Justice: Technology and Internet of Disputes. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 31-32.
[22] SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers: and introduction to your future. 2ndedition. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 117.
[23] AB2L. Ecossistema. Associação Brasileira de Lawtechs & Legaltechs. Disponível em: https://www.ab2l.org.br/ecossistema/ - Acesso em 28 de out. 2017.
[24] CNJ. Justiça em Números 2017. Conselho Nacional de Justiça; Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/09/904f097f215cf19a2838166729516b79.pdf– Acesso em 5 de nov. 2017.
[25] ACORDO FECHADO. Conheça nossas vantagens. Acordo Fechado. Disponível em: http://acordofechado.com.br/ - Acesso em 5 de nov. 2017.
Comments