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O Dever de Revelação do Árbitro e o Conflito de Interesses com Relação ao Third-Party Funding no Bra

Renata Luz, graduanda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Membro do Comitê de Jovens Arbitralistas – CJA

Maria Clara Fernandes, graduanda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Membro do Comitê de Jovens Arbitralistas - CJA

A arbitragem, que há alguns anos vem sendo descrita como uma tendência em expansão no Brasil, não apenas pelo expressivo número de procedimentos já realizados, mas especialmente diante de sua aceitação pela jurisprudência e da familiaridade com que profissionais e doutrinadores tratam do tema, já é responsável por grande fatia do mercado de litígios do país.


Apesar disto, ainda é frequente a resistência por parte de clientes e advogados na inserção de cláusulas compromissórias em contratos, muito em razão do receio dos contratantes em relação aos altos custos envolvidos em uma possível demanda arbitral. Isto porque, entre o momento da formação do negócio jurídico e o surgimento do litígio, é comum que transcorra um lapso temporal considerável, durante o qual a situação econômico-financeira das partes pode se alterar substancialmente, tornando as custas, um verdadeiro impeditivo à instauração do procedimento, e, portanto, à solução do conflito.


Neste contexto, a proposta de financiamento de litígios por terceiros, ou third-party funding, surge como solução para esse empecilho, garantindo às partes reticentes, a segurança necessária para a escolha desse meio de resolução de conflitos.


Como o próprio nome já diz, o third-party funding é meio pelo qual um terceiro em relação à cláusula compromissória se dispõe a arcar com os custos para instauração e desenvolvimento de um procedimento arbitral, em troca de receber parte do ganho auferido na sentença, caso a parte financiada logre êxito na demanda.


Em atenção ao crescimento da utilização do financiamento de litígios no âmbito da arbitragem, a Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), uma das câmaras de maior atuação no mercado nacional, editou, em 2016, Resolução Administrativa[1] prevendo uma definição de third-party funding:


“Artigo 1º - Considera-se financiamento de terceiro quando uma pessoa física ou jurídica, que não é parte no procedimento arbitral, provê recursos integrais ou parciais a uma das partes para possibilitar ou auxiliar o pagamento dos custos do procedimento arbitral, recebendo em contrapartida uma parcela ou porcentagem de eventuais benefícios auferidos com a sentença arbitral ou acordo."


Em conhecida tese de doutorado a respeito do tema, Napoleão Casado Filho descreve o negócio jurídico da seguinte forma:

“Parece-nos que o financiamento de terceiros, em processos judiciais ou arbitrais, pode ser definido como um método de financiamento no qual uma entidade, que não faz parte de um conflito, suporta as despesas do processo no lugar de uma das partes, arcando com os honorários dos advogados, dos julgadores e com as demais despesas necessárias à produção de provas e administração do processo. Em retorno, a entidade financiadora recebe uma porcentagem dos ganhos decorrentes da decisão final. Trata-se de contrato aleatório, pois o financiador pode não receber nada em caso de insucesso no processo”[2].

É interessante notar que, enquanto para a parte litigante o mecanismo funcione como um financiamento – ao passo que lhe disponibiliza recursos que deverão ser posteriormente devolvidos ao financiador –, para este último o third-party funding nada mais é que um investimento. O funder possui – e deve possuir apenas – interesse econômico na disputa, de modo que assume um risco ao apostar no direito de terceiro, em troca da expectativa de um retorno financeiro vantajoso.


Fato é que a prática vem ganhando notoriedade, seja por facilitar o acesso à justiça, seja por apresentar benefícios econômicos, tanto à parte financiada quanto ao financiador.


Todavia, alguns temas ainda geram debates acerca do financiamento de arbitragens por terceiros. Dentre as questões que pairam a respeito dos impactos dessa forma de investimento, destaca-se, primeiramente, a existência, ou não, do dever da parte financiada de revelar, aos árbitros e à sua contraparte[3], a existência, bem como os termos do acordo de financiamento. Em caso positivo, surge a questão, ainda, acerca da extensão desse dever, tanto subjetiva (para quem revelar), quanto objetivamente (o que revelar).


Este ponto é especialmente relevante, uma vez que a Lei de Arbitragem, em seu artigo 14, §1º, impõe aos árbitros o dever de revelação. Segundo o dispositivo legal, devem os julgadores revelar às partes quaisquer fatos capazes de suscitar dúvidas justificáveis quanto à sua nomeação, em especial as relações que tiveram ou têm com as partes e que ponham em risco sua independência e imparcialidade, em relação a todos os interessados no resultado da demanda.


Ocorre que, muito embora a literalidade da norma limite seu escopo à relação do árbitro com as partes do procedimento, defende o professor Marcelo Ferro, em relevante artigo sobre o tema, a irrelevância do conceito de “parte” para tal fim, aduzindo que o árbitro deve avaliar a sua independência em relação a todos os interesses envolvidos naquela disputa, ainda que provenientes de terceiros. Por isso, o dever do árbitro de avaliar a sua independência se estenderia também ao terceiro investidor, ainda que ele não figure como parte do procedimento, uma vez que, assim como no caso de integrantes de um mesmo grupo econômico, há uma substancial convergência de interesses entre o financiador e a parte financiada:

“De fato, é cediço que o dever de revelação do árbitro não se limita a avaliar sua independência apenas perante aquele que figura no processo como "parte". A pesquisa deve ser mais ampla, a fim de incluir outras pessoas cuja ligação com os litigantes possa afetar, aos olhos do adversário, sua independência - como, por exemplo, a integração de uma parte a um grupo econômico -, ou mesmo relações do árbitro com terceiros interessados na solução do litígio de forma adversa a uma das partes (v.g., se o árbitro participa da direção de uma companhia concorrente a uma das partes) ”[4].

O dever de revelação do funder não apenas é extremamente recomendado pelas melhores práticas de arbitragem[5], como foi adotado por algumas legislações que já regulam o third-party-funding. Hong Kong[6] e Singapura[7], por exemplo, recentemente promulgaram leis que impõe o exercício do dever revelação em procedimentos financiados.


O mesmo entendimento foi adotado em decisão prolatada no âmbito do International Centre for Settlement of Investment Disputes (ICSID), no caso Muhammet Çap v. Turkmenistan, em que o tribunal ordenou que uma das partes revelasse a identidade do funder, bem como divulgasse informações sobre a natureza e os termos doacordo de financiamento.


Existem casos, no entanto, em que o acordo de financiamento é confidencial, estando disponível apenas à parte financiada e ao terceiro investidor, não sendo, portanto, divulgado aos árbitros. Eles, por sua vez, diante do desconhecimento da existência de um terceiro investidor, carecem de informações suficientes para avaliar a sua independência e imparcialidade em relação ao funder[8].


Ainda que, na prática, existam apenas dois fundos de investimento especializados em litígios arbitrais, atualmente, no Brasil[9] e que, estes permitam que o tribunal arbitral tenha ciência da existência do contrato de financiamento com eles firmado, fato é que raríssimamente os termos e valores da avença, ou mesmo a identidade dos administradores, gestores e integrantes dos fundos são divulgadas aos árbitros, prejudicando, assim, o exercício do dever de revelação pelos julgadores.


Nesse contexto, é razoável dizer que há um certo conflito entre o dever de revelação dos árbitros e a confidencialidade dos acordos de third-party funding. Afinal, o que deve ser feito quando há cláusula de confidencialidade no contrato de financiamento? Assim como deixar de revelar o financiamento, significa correr o risco de gerar uma possível nulidade na sentença (art. 32, II da Lei nº 9.307/96), a violação da cláusula de confidencialidade também prejudica a efetividade da arbitragem, já que, violada a cláusula de confidencialidade, é facultado ao investidor retirar o seu aporte, impedindo que o desenvolvimento do procedimento.


Sobre a questão, Marcelo Ferro[10] propõe uma solução recorrendo aos princípios gerais de probidade e boa-fé (art. 422 do Código Civil), atraídos pela natureza contratual da cláusula compromissória, dos quais decorrem, para as partes, determinadas obrigações que servem à análise do dever de revelação inerente a um contrato de third-party funding.

O primeiro dos efeitos da observância de tais princípios pela parte financiada é que ela não deve se aproveitar da situação em benefício próprio, ou seja, não pode valer-se de uma possível não obrigatoriedade de revelar à sua contraparte e ao tribunal a existência de um financiador.


Tal conduta possibilitaria, por exemplo, que a existência de alguma relação entre o investidor e algum dos árbitros pusesse em risco a sua imparcialidade e independência, sem que tal fato fosse relevado à contraparte não financiada, impedindo que esta fizesse a devida e tempestiva impugnação.


A parte financiada tem, portanto, a obrigação de revelar a existência do terceiro financiador, justamente para que o árbitro possa avaliar a sua independência e imparcialidade em relação a ele, o qual possui um interesse econômico direto no resultado do litígio.


Em um exemplo concreto, caso determinado árbitro já tenha prestado serviços para o administrador ou gestor do fundo que investe no litígio, é imprescindível que o julgador tenha conhecimento da existência deste financiador, pois só assim a análise de sua independência e imparcialidade será feita de maneira exaustiva, com pleno conhecimento de todos os interesses envolvidos na disputa, garantindo-se assim que a futura sentença arbitral será proferida de forma válida e eficaz, atendendo a todos os requisitos da Lei 9.307/96.


Assim, é nítido que o princípio geral da boa-fé impõe à parte um dever de preocupação com a efetividade do processo. Isto porque, caso em um procedimento arbitral ocorresse situação equivalente à mencionada acima entre o árbitro e o financiador, configurar-se-ia flagrante a possibilidade de nulidade da sentença arbitral. Por essa razão, ao deixar de relevar o acordo de third-party funding, pretendendo guardar tal informação para utilizá-la como fundamento de ação anulatória contra uma eventual sentença arbitral desfavorável, a parte financiada viola a boa-fé processual. Não apenas porque impede a devida avaliação do árbitro sobre sua independência e imparcialidade, mas também porque põe em risco a higidez da decisão proferida pelo tribunal, vista a possibilidade de se dar causa à ação anulatória de sentença arbitral, com base no art. 32, II da Lei de Arbitragem[11].


Nesse mesmo sentido, estabelece o Princípio Geral 7(a) das IBA Guidelines, normas de soft law comumente utilizadas para fins de aferição dos níveis de independência e imparcialidade dos árbitros:

“A party shall inform an arbitrator, the Arbitral Tribunal, the other parties and the arbitration institution or other appointing authority (if any) of any relationship, direct or indirect between the arbitrator and the party (or another company of the same group of companies, or an individual having a controlling influence on the party in the arbitration), or between the arbitrator and any person or entity with a direct economic interest in, or a duty to indemnify a party for, the award to be rendered in the arbitration. The party shall do so on its own initiative at the earliest opportunity.”

Apesar de as IBA Guidelines não serem cogentes, elas são as diretrizes de conduta mais utilizadas internacionalmente em arbitragens, principalmente nos casos em que se percebe haver lacunas na legislação adotada, conforme assevera Gary Born[12].


Não só isso, conforme comenta Bruno Teixeira, a necessidade de divulgação do financiamento se justifica também em razão da repartição das despesas da arbitragem:

“Quando da prolação da sentença arbitral, o Tribunal Arbitral poderá determinar o reembolso do que foi antecipado pela parte vencedora, ante a sucumbência da parte vencida. Assim, há o risco de uma das partes, em dificuldades financeiras, conseguir levantar capital para arcar com as suas despesas da arbitragem, mas, em caso de perda, não possuir os fundos necessários para reembolsar as despesas da sua contraparte vencedora”[13].

Portanto, por mais que não haja norma expressa impondo à parte financiada o dever de revelar o contrato com terceiro financiador, é nítido que a parte financiada não tem direito de omitir dos árbitros e de sua contraparte a sua existência. Conforme demonstrado ao longo deste trabalho, a participação deste investidor pode, a depender das circunstâncias de cada caso, gerar dúvida justificável aos olhos da parte não financiada, o que tem o condão de comprometer por completo não apenas o prosseguimento do procedimento arbitral, mas também sua efetividade como um todo.


Assim, pelas razões expostas, concordando com a parte majoritária da doutrina nacional que se debruçou sobre o tema, entendemos que a parte financiada tem o dever de revelar a existência do acordo de third-party funding ao Tribunal Arbitral e à parte não financiada, não só para prevenir a sentença de uma possível nulidade, motivada por vícios quanto à independência e parcialidade dos árbitros em relação ao financiador, como para que seja possível uma decisão informada a respeito de possíveis problemas no pagamento de custas e de antecipação de despesas.

[1] Resolução Administrativa CAM/CCBC 18/2016. Disponível em http://www.ccbc.org.br/Materia/2890/resolucao-administrativa-182016. Acesso em 05.12.2017 às 14:05.


[2] CASADO FILHO, Napoleão. Arbitragem e Acesso à Justiça - O Novo Paradigma do Third-Party Funding, 2017. p. 120


[3] Third-Party Funding in Arbitration: Innovations and Limits of Self-Regulation (Part 2 of 2). Jean E. Kalicki, Arnold & Porter LLP.


[4] FERRO, Marcelo. O Financiamento de Arbitragens por Terceiro e a Independência do Árbitro, 2013. p. 626-627.


[5] IBA Guidelines on conflicts of interest in International Arbitration, 2014.


[6] Arbitration and Mediation Legislation (Third Party Funding) (Amendment) Bill of Hong Kong, 2016.


[7] Legal Profession Act of Singapore, 2015.


[8] FERRO, 2013, p. 630.


[9] Atualmente apenas a Leste Litigation Finance possui um fundo especializado e estruturado para financiamento de arbitragens no Brasil. Além da Leste, a Lex Finance, peruana, também já atua no financiamento de litígios brasileiros.


[10] Ibid., p. 631-633.


[11] FERRO, 2013, p. 631.


[12] BORN, Gary. International Commercial Arbitration (second edition). Kluwer Law International, 2014, p. 2321.


[13] TEIXEIRA, Bruno. O financiamento da arbitragem por terceiros e o dever de revelação. Disponível em http://www.cbar.org.br/blog/artigos/o-financiamento-da-arbitragem-por-terceiros-e-o-dever-de-revelacao. Acesso em: 02 nov. 2016.


 
 
 

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