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A regra nem sempre é clara: Suprema Corte Suíça anula sentença do CAS a pedido de jogador de futebol

Daniel Becker, advogado, pós-graduando em Direito Público pela Fundação Getúlio Vargas, graduado em Direito pela UFRJ, Diretor de Novas Tecnologias do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), Membro da Silicon Valley Arbitration and Mediation Center (SVAMC), e fundador do portal LEX MACHINÆ.

Roberto Rommel, advogado, pós-graduando em Direito Societário e Mercado de Capitais pela Fundação Getúlio Vargas, graduado em Direito pela UFRJ, membro do Comitê de Jovens Arbitralistas do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA)

Há cerca de dois anos, foi comentado neste blog o polêmico caso da patinadora velocista e medalhista olímpica alemã Claudia Pechstein[1]. Muito resumidamente, a atleta acusada de doping sanguíneo, cuja penalidade foi confirmada pelo Court of Arbitration for Sport (CAS), iniciou uma batalha colina acima perante o Poder Judiciário suíço e, posteriormente, o alemão com o objeto de anular a sentença arbitral a ela desfavorável. Após ter sua pretensão julgada improcedente na medida judicial que tramitou perante a Suprema Corte suíça, Pechstein concentrou seus esforços na justiça de sua terra natal, e, supreendentemente, obteve sucessivas vitórias nas cortes germânicas (Landgericht e Oberlandesgericht), tendo a ação somente sido julgado totalmente improcedente, quando alcançou a instância superior da Alemanha, o Bundesgerichtshof.

O fundamento mais relevante da pretensão de Pechstein – e que fez o seu caso chegar tão longe nessas cortes europeias – era a nulidade da convenção de arbitragem por estar ela inserida em contrato de adesão, notadamente o formulário de associação à federação desportiva. Na visão dela, parcialmente acompanhada pelas cortes inferiores da Alemanha, o prevalecimento da sentença proferida pelo CAS violava a ordem pública alemã, uma vez que prestigiava a Federação Internacional de Patinação (ISU) em detrimento dos atletas.

Embora o desfecho da disputa tenha sido favorável para as federações e a jurisdição do CAS, ela foi capaz de chacoalhar os alicerces da tradicional indústria de resolução de disputas desportivas. A uma, porque o Poder Judiciário da Alemanha chegou muito perto de anular a sentença arbitral. A duas, porque o próprio CAS, após o desenredo, soltou nota em leve tom de retratação, afirmando que a corte estava em “constante evolução para atender as melhores práticas e tendências do esporte e da arbitragem internacional”, a fim de tornar sua atividade mais inclusiva para os atletas[2].

Contudo, a despeito da lição deixada pela tortuosa contenda de Pechstein finalizada em 2016, no início deste ano, tivemos um novo capítulo na arbitragem internacional desportiva envolvendo convenção de arbitragem. Em 2011, o jogador de futebol Ezequiel Matias Schelotto firmou contrato de agenciamento com um empresário desportivo, licenciado pela Associação Argentina de Futebol (AFA). Durante a vigência do contrato, o qual durou até dezembro de 2012, Ezequiel renovou o contrato de trabalho com o clube de futebol Atalanta, assinou contrato de patrocínio e cedeu sua imagem para uso em um jogo de vídeo game. Já após o término do contrato de agenciamento, em janeiro de 2013, Ezequiel foi contratado pelo Internazionale de Milão.

Seu antigo empresário, entendendo ser credor de valores em aberto, apresentou requerimento perante o FIFA Player’s Status Commitee (FIFA) em setembro de 2013 contra o boleiro argentino. Na sequência, em junho de 2015, a FIFA inadmitiu o requerimento do agente, o qual, de plano, recorreu ao CAS. Após dois anos de tramitação, em junho de 2017, o CAS deu provimento ao recurso do agente, afastando a decisão da FIFA e determinando que o jogador argentino pagasse mais de um milhão de euros ao seu ex-agente.

No contrato, havia cláusula de eleição de foro que conferia jurisdição ao Tribunal Comercial da cidade de Buenos Aires na Argentina. Contudo, o mesmo contrato também conferia jurisdição a outro órgão argentino, o Órgão de Solução de Controvérsias da Associação Argentina de Futebol (AFA), bem como ao Comitê de Status de Jogadores da FIFA. A confusa cláusula, originalmente escrita em espanhol, foi traduzida da seguinte forma pelo CAS:

For processing and elucidation of any conflict that may arise in connection with the celebration [conclusion], interpretation, execution, and extinction of the present contract and without prejudice that can occur before national and international bodies corresponding states [Dispute Resolution Body of the Asociación del Fútbol Argentino (AFA) and the Fédération Internationale de Football Association (FIFA) Players' Status Committee in the international order],(3) based on the constitutional guarantee of natural judge (Art. 18 N.C.) the parties submit themselves to the jurisdiction and decisions of the courts in the Comercial de Capital Federal, República Argentina.“

Com a reforma da decisão da FIFA pelo CAS, dando provimento ao recurso do ex-agente, o jogador argentino apelou para a Suprema Corte suíça, alegando que o CAS considerou a jurisdição do Comitê de Status de Jogadores da FIFA sem a existência expressa e necessária anuência para arbitrar do jogador.

Após a análise do recurso do jogador argentino, a Suprema Corte concluiu que o CAS havia interpretado de forma objetiva as declarações das partes. Nesse contexto, a Suprema Corte Suíça observou que a convenção de arbitragem não mencionava nenhum tribunal arbitral, tampouco o CAS, além de que ficava claro, pela leitura do contrato, que as partes haviam se submetido expressamente à jurisdição do Tribunal Comercial de Buenos Aires.

Ainda de acordo com a Corte Superior da Suíça, não estava suficientemente claro, na convenção de arbitragem, como a referência aos órgãos de resolução de disputas da FIFA e da AFA deveria ser entendida, sendo tal referência insuficiente para estabelecer, sem qualquer sombra de dúvidas, a clara e manifesta intenção das partes de resolver as disputas relacionadas ao contrato de corretagem à arbitragem, excluindo os tribunais argentinos. Trata-se de evidente cláusula compromissória patológica[3]. Em sua redação, não há afastamento da jurisdição estatal e concessão de poder jurisdicional para os árbitros resolverem os litígios entre as partes[4].

A Suprema Corte suíça - exceto em casos de arbitragem relacionados a esportes - aplica uma abordagem bastante rígida em relação ao consentimento para arbitrar. Uma vez que o consentimento das partes para arbitrar é estabelecido, o Tribunal adota uma abordagem mais liberal. Esse é um dos raros casos em que o Tribunal aplicou uma abordagem estrita sobre o consentimento para arbitrar na área de arbitragem esportiva. Desde a criação do CAS em 1984, foram proferidas pouquíssimas decisões pela Suprema Corte em desfavor de sentenças arbitrais desportivas[5].

Em maio de 2017, diversos sindicatos de atletas profissionais internacionais (FIFPro[6], WAIPU[7] e SAFP[8]), em nome de mais de setenta mil atletas profissionais ao redor do planeta, submeteram uma proposta legislativa ao Senado suíço sugerindo mudanças na legislação internacional[9], a fim de que os direitos dos atletas fossem protegidos de maneira apropriada, no diploma legal que rege as regras do direito internacional no país.

Essa proposta legislativa tem como intuito expandir os fundamentos pelos quais podem ser baseados os pedidos de afastamento da arbitragem nos casos desportivos. Afinal, o CAS é o maior tribunal arbitral do esporte e suas decisões têm o condão de alterar significativamente competições internacionais, definir carreiras inteiras de atletas consagrados, tais como Claudia Pechstein, assim como disputas contratuais de cunho esportivo que movimentam cifras vultosas.

É imperioso que o Poder Legislativo da Suíça considere as propostas apresentadas por esses sindicatos que representam milhares de atletas de nível internacional, a fim de conferir maior segurança jurídica não somente à arbitragem como meio adequado para resolução dessas disputas, como também proteger a reputação do próprio CAS.

[1] BECKER, Daniel; BRÍGIDO, João Pedro. O desfecho do emblemático Caso Pechstein e o seu legado para a arbitragem desportiva. Comitê de Jovens Arbitralistas. http://cjarbitralistas.wixsite.com/cjarbitralistas/single-post/2016/09/12/O-desfecho-do-emblem%C3%A1tico-Caso-Pechstein-e-o-seu-legado-para-a-arbitragem-desportiva – Acesso em 18 de jun. 2018.

[2] CAS. Statement of the Court of Arbitration for Sport (CAS) on the decision made by the Oberlandesgericht München in the case between Claudia Pechstein and the International Skating Union (ISU). Court of Arbitration for Sport. Disponível em http://www.tas-cas.org/fileadmin/user_upload/CAS_statement_ENGLISH.pdf – Acesso em 18 de jun. 2018.

[3] Na definição de Carmona: “para designar aquelas avenças inseridas em contrato que submetem eventuais litígios à solução de árbitros mas que, por conta de redação incompleta, esdrúxula ou contraditória, não permitem aos litigantes a constituição do órgão arbitral, provocando dúvida que leva as partes ao Poder Judiciário para a instituição forçada da arbitragem.” (CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. São Paulo: Atlas, 2009, p. 112)

[4] “1) la première, commune à toutes les conventions est de produire des effets obligatoires pour les parties, 2) la seconde est d’écarter l’intervention des tribunaux étatiques dans le règlement d’un différend, tout au moins avant le prononcé d’une sentence, 3)la troisième est de donner pouvoir à des arbitres de régler les litiges susceptibles d’opposer les parties, 4) la quatrième est de permettre la mise en place d’une procédure conduisant dans le meilleures conditions d’efficacité au prononcé d’une sentence susceptible d’exécution forceé” (EISEMANN, Frédéric. La clause d’arbitrage pathologique. In: MINOLI, Eugenio (col.). Commercial Arbitration – Essays in memoriam Eugenio Minoli. Turim: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1974, p. 130)

[5] SCHWING, Mel Andrew; KAIAS, Chris. The evolution of the Court of Arbitration for Sport. The Inter-Pacific Bar Association. Disponível em: https://www.corrs.com.au/assets/thinking/downloads/IPBA-Sep2016.pdf - Acesso em Acesso em 18 de jun. 2018

[6] FIFPro é uma organização mundial que representa todos os jogadores profissionais de futebol. Para mais informações: https://www.fifpro.org/en/about-fifpro/about-fifpro

[7] WAIPU é a organização mundial que representa todos os jogadores profissionais de hockey no gelo. Para mais informações: http://www.waipu.org/node/10

[8] SAFP é a associação Suíça de jogadores de Futebol profissionais. Para mais informações: http://www.safp.ch/

[9] ASA. Stellungnahme der Association Suisse de l'Arbitrage (ASA) in der Vernehmlassung zur Revision (Änderung) des Bundesgesetzes über das Internationale Privatrecht (Internationale Schiedsgerichtsbarkeit). Swiss Arbitration Association. Disponível em: https://www.admin.ch/ch/d/gg/pc/documents/2829/Internationale-Schiedsgerichtsbarkeit_Stellungnahmen-Organisationen.pdf - Acesso em 18 de jun. 2018


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