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Considerações sobre as recém-lançadas Regras de Praga sobre a Condução Eficiente de Procedimentos em

Introdução

Foi oficialmente lançado, em 14 de dezembro de 2018, o conjunto de regras denominado As Regras de Praga sobre a Condução Eficiente de Procedimentos em Arbitragem Internacional (“Regras de Praga” ou “Novas Regras”)[1]. A cerimônia de assinatura aconteceu durante uma conferência na capital da República Tcheca. Entre os signatários estão “representantes das principais associações nacionais de arbitragem de países europeus e da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), além de renomados árbitros”[2].

O documento, que vem sendo continuamente esboçado em conferências ao longo de alguns anos, é uma resposta direta às IBA Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration, que, segundo os autores das Regras de Praga, tendem a privilegiar partes oriundas da tradição jurídica do common law. Assim, as Novas Regras, que se chamavam Inquisitorial Rules na primeira versão, apresentam-se como uma nova opção às partes que vêm do civil law (sistema jurídico romano-germânico).

A ideia surgiu a partir da percepção de alguns membros da comunidade arbitral de que as recentes práticas — incluindo as regras da IBA — vêm causando uma “assustadora americanização da arbitragem internacional” (creeping Americanization of international arbitration). Segundo eles, o modelo adversarial seguido pelo common law, onde o juiz tem um papel pouco relevante e os protagonistas são os advogados, vem se mostrando oneroso aos procedimentos arbitrais.

Nesse sentido, como informa o seu preâmbulo, as Regras de Praga foram inicialmente pensadas como exclusivas para litígios entre empresas oriundas de países de civil law. Porém, com as discussões que se seguiram ao anúncio do documento, o projeto evoluiu para um conjunto de regras que visa diminuir os custos e o tempo dos procedimentos arbitrais através de um tribunal arbitral inquisitorial, típico do sistema romano-germânico.

Nesse sentido, Guilherme Rizzo Amaral[3]:

“The Prague Rules are a manifesto in favour of the civil law tradition and of an inquisitorial approach in international arbitration, as well as an attack on the inefficiencies of the adversarial approach. If their official name was not enough evidence of that – Inquisitorial Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration –, the note from the Prague Rules’ working group leaves no room for doubt. It criticises the IBA Rules ‘from a civil law perspective’ for following ‘a more adversarial approach’. It goes on to say that many of the procedural features of the IBA Rules ‘are not known or used to the same extent in non-common law jurisdictions, such as continental Europe, Latin America, [the] Middle East and Asia’. It then states that the adoption of an ‘inquisitorial model of procedure’ would contribute to the efficiency in international arbitration, ‘reducing time and costs of arbitrations’.”

Vale ressaltar que o texto das Novas Regras deixa claro que a atitude inquisitorial do tribunal não deverá ser considerada como parcial e os árbitros não poderão ser impugnados ou desqualificados pelo fato de terem atitudes proativas (art. 2.4)[4].

O choque de culturas em arbitragem internacional: common Law vs civil Law

Não é de hoje que o choque de culturas é hot topic em arbitragem internacional. Dentro desse tema, o assunto mais discutido certamente é o de partes que vêm de tradições jurídicas diferentes. Essa situação pode acarretar diversos problemas, tais como desentendimentos, vieses cognitivos e dificuldades de adaptação às práticas que não existem em sua jurisdição de origem.

O sistema jurídico do civil law, dominante na Europa Continental, na América Latina e na Ásia Oriental, caracteriza-se pela predominância de leis escritas positivadas pelo Estado e por um protagonismo do juiz na condução do processo — o sistema inquisitorial. Por outro lado, o sistema jurídico do common law originou-se nos tribunais ingleses e está presente na maioria das ex-colônias britânicas. Essa tradição jurídica é caracterizada como adversarial, pois as partes são as protagonistas do andamento do processo. A função principal do juiz é fiscalizar se os ditames do devido processo legal e da igualdade das partes estão sendo observados.

Todavia, a questão que sempre gerou mais controvérsia é a produção de provas. Para um advogado treinado no civil law, as melhores provas vêm sempre de documentos[5]. Já o sistema de common law tem uma predileção por provas testemunhais, adquiridas inclusive das testemunhas arroladas pela outra parte (cross-examination). É prática que as testemunhas sejam preparadas antes das inquirições. Também é comum a prática do discovery, isto é, obter evidências documentais da outra parte em um momento anterior ao processo, com vistas a obter informações que só a outra parte possui.

A questão, porém, é muito mais do que meramente procedimental. É uma questão de cultura. Ora, para um advogado educado no direito romano-germânico, preparar uma testemunha é percebido como algo antiético[6]. Não obstante, juristas oriundos do civil law não são versados em discovery e cross-examination, pois não têm quase nenhum tipo de contato com essas práticas. As próprias testemunhas ficam extremamente frustradas quando expostas à inquirição dos advogados da outra parte[7]. Já os attorneys, ao contrário, são treinados desde a law school na arte de interrogar testemunhas e obter evidências das outras partes.

Com efeito, como o leitor já percebeu, é óbvio que procedimentos que privilegiam práticas oriundas de determinado sistema jurídico favorecem também as partes que vêm desse sistema.

Os argumentos a favor

O Dr. Andreas Respondek, advogado qualificado para atuar tanto na Alemanha (“Rechtsanwalt”) quanto nos EUA (“Attorney-at-law”), enumera alguns princípios de civil law que podem beneficiar procedimentos de arbitragem internacional em termos de redução de duração e custos[8].

Uma prática recorrente — e onerosa — do common law é o ajuizamento de uma statement of claim resumida, isto é, contendo apenas uma breve descrição dos fatos e da teoria por trás do provimento jurisdicional requerido. Maiores detalhes são protocolados posteriormente. Na tradição do civil law, por outro lado, a petição inicial é completa, contendo todos os argumentos de fato e de Direito, além de todos os documentos que embasam a argumentação defendida. Para Respondek, obrigar as partes a submeter petições completas daria ao tribunal arbitral uma visão completa do caso e reduziria consideravelmente a duração já no início do procedimento arbitral.

O advogado alemão também clama por mais procedimentos arbitrais em que sejam permitidas apenas provas provenientes de documentos escritos, produzidos antes do surgimento da disputa. Para ele, se a autenticidade desses documentos não for contestada, não há por que ouvir testemunhas. A maioria das regras arbitrais traz a opção de processos “document-only”, mas ela raramente é usada.

Um dos elaboradores das Prague Rules, Andrey Panov, assevera que elas não foram criadas para substituir as Regras da IBA[9]. Elas seriam mais uma opção, usada preferivelmente em arbitragens nas quais as partes vêm do civil law ou em casos específicos, nos quais não seja necessário adotar práticas de common law e se necessite de maior celeridade.

Panov também considera que procedimentos arbitrais com um grande protagonismo de advogados (“counsel-driven”) acabam sendo excessivamente custosos e longos, embora reconheça que esse tipo de procedimento é necessário em casos muito complexos[10]. Ele lembra que as instituições arbitrais vêm tentando sanar esse problema aplicando o instituto da arbitragem expedita em casos pequenos, mas afirma que casos grandes também podem ser “simples e relativamente diretos”. Além disso, ao contrário dos advogados, o árbitro tem o dever de ser imparcial, motivo pelo qual o procedimento não pode ser conduzido pelos primeiros.

O advogado russo também critica o que é chamado de “paranoia do devido processo” – o temor dos árbitros de que a sentença da arbitragem venha a ser anulada devido a uma violação do devido processo legal, isto é, um ato jurisdicional praticado em desrespeito ao direito de ampla defesa das partes ou ao contraditório. Segundo ele, esse fenômeno é inerente à arbitragem internacional e consiste na aceitação, pelos árbitros, de práticas que não seriam aceitas em nenhuma jurisdição, nem de civil law, nem de common law, tais como: perder prazos, submeter evidência em atraso, bombardear os árbitros com documentos de milhares de páginas e fazer inúmeros requerimentos procedimentais. Essas práticas são conhecidas como “táticas de guerrilha”. Para Panov, essas práticas tornaram-se marcas próprias (“hallmarks”) da arbitragem internacional moderna.

Nesse diapasão, Andrey afirma que a arbitragem necessita de tribunais que não sofram dessa paranoia, ou seja, precisa de árbitros que exerçam seu múnus sem o medo de serem desqualificados ou caracterizados como parciais. As Regras de Praga, ao darem carta branca para que os árbitros ajam com proatividade, podem ser uma solução.

As críticas

Como observa Ben Giaretta, as Regras de Praga têm poucas disposições mandatórias[11]. O que a nova coletânea faz é apenas encorajar os árbitros a realizar ações com o fulcro de agilizar o procedimento arbitral. Por exemplo, os artigos 2 e 3 estabelecem que o tribunal “tem o poder de e é incentivado a” ser proativo na primeira conferência de gestão do processo e na produção de provas, respectivamente. As Novas Regras também aconselham os árbitros a realizar atos já existentes, mas que não são muito usados, tais como restringir o número e o tipo de provas que podem ser submetidas e determinar um tempo limite para as rodadas de cross-examination.

A conclusão de Giaretta é que um procedimento que siga as Regras de Praga será muito pouco diferente de qualquer outra arbitragem internacional, dada a quase ausência de disposições obrigatórias. O que pode vir a acontecer é que um árbitro de natureza proativa siga as sugestões das Novas Regras e acabe por tornar o processo mais célere, mas cabe às partes indicar árbitros com tal perfil.

Já Michal Kocur declara que as Regras de Praga partem de premissas erradas e trazem conclusões igualmente erradas[12]. As práticas oriundas do common law, segundo ele, não são as principais culpadas pela dilatação do tempo e dos custos dos procedimentos arbitrais internacionais. A principal causa é a má administração do processo por parte dos árbitros. Dessa forma, quando administrados corretamente, institutos próprios do common law, como o cross-examination e o discovery, geralmente levam a decisões melhores. Não obstante, para Kocur, as Novas Regras dão um poder demasiado grande ao tribunal, poder esse maior até do que em procedimentos realizados nas próprias jurisdições de direito romano-germânico, o que poderia levar a decisões de menor qualidade.

Guilherme Rizzo Amaral afirma que as Regras de Praga e as Regras da IBA não são tão diferentes[13]. Por exemplo, ambas as coletâneas encorajam ao tribunal identificar quaisquer questões que considerem importantes ao procedimento (art. 2.3 das Regras da IBA[14] e 3.1 das Regras de Praga[15]). Não obstante, as IBA Rules são, em alguns momentos, até mais inquisitoriais do que as Novas Regras. Por exemplo, o art. 3 estabelece que o tribunal pode ordenar a produção de provas, enquanto o texto das Regras de Praga usa o verbo “requerer” ao versar sobre essa questão.

Conclusão

Embora ainda não possamos afirmar se as Regras de Praga serão bem-sucedidas ou não, pode-se dizer que uma nova opção de regras procedimentais é sempre bem-vinda – afinal, convenhamos, é importante que haja competição. A existência de mais de um conjunto de regras disputando a preferência dos usuários leva a um constante aperfeiçoamento.

As críticas às Novas Regras são pertinentes. Se é correto afirmar que há uma assustadora americanização da arbitragem internacional, a recíproca também é verdadeira: a harmonização também está levando a uma “assustadora codificação”[16].

Não há evidência de que a mera adoção de um tribunal com muitos poderes possa beneficiar a condução do procedimento arbitral. Pelo contrário, um tribunal inquisitório pode acarretar um aumento na judicialização, principalmente se for constituído de árbitro único. Deve-se tomar cuidado com a linha tênue entre a proteção da livre atuação árbitro e uma eventual abusividade do tribunal.

Vale ressaltar que várias câmaras arbitrais de países de civil law reformaram suas regras este ano e mantiveram suas características próprias do direito romano-germânico, sem recorrer a “super-árbitros”, mas, sim, a um maior poder da própria câmara. Foi o caso da VIAC (Áustria) e da DIS (Alemanha), por exemplo, as quais editaram suas regras visando impulsionar a arbitragem internacional. A Suíça, por sua vez, encontra-se em processo de revisar suas regras com o intuito de também tornar-se mais atrativa internacionalmente[17].

Todavia, a edição das Regras de Praga é uma tentativa de lidar com problemas que realmente existem. É evidente que a arbitragem internacional privilegia as partes oriundas do common law. O debate construído pelos criadores das Novas Regras lançou luz sobre esse fato e criou uma grandiosa discussão, que já se mostrou, por si só, benéfica. Nesse ponto, pode-se afirmar que a edição das Regras de Praga cumpriu o seu propósito.

Também é muito pertinente o combate às chamadas táticas de guerrilha e à paranoia do devido processo. Para que os árbitros não se sintam compelidos a aceitar todas os requerimentos das partes, é importante que estejam revestidos de proteções.

Enfim, a única certeza é a de que cada caso é um caso. A construção do procedimento da maneira que as partes considerarem apropriado para cada ocasião específica é e deve continuar sendo uma das maiores qualidades do direito arbitral[18]. De um jeito ou de outro, a comunidade deve ficar atenta para não caminhar rumo a nenhuma direção assustadora, seja a da americanização, seja a da codificação.

[1] O texto oficial (em português) encontra-se disponível em: <http://praguerules.com/upload/medialibrary/1ce/1ceb209403ed5145d6b85c632489bf56.pdf>

[2] “Prague Rules were officially launched”, Praguerules.com, 17/12/2018. Disponível em:<http://praguerules.com/news/prague-rules-officially-took-off/>. Acesso em: 22/12/2018.

[3] Guilherme Rizzo Amaral, “Prague Rules v. IBA Rules and the Taking of Evidence in International Arbitration: Tilting at Windmills: part I”. Kluwer Arbitration Blog, 5/7/2018. Disponível em:<http://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2018/07/05/prague-rules-v-iba-rules-taking-evidence-international-arbitration-tilting-windmills-part/>

[4] Regras de Praga: “2.4 (…) A expressão destas apreciações preliminares não poderá por si só ser considerada como evidência da falta de imparcialidade e independência do tribunal arbitral e também não poderá constituir fundamento para a desqualificação do árbitro.”

[5] Siegfried H. Elsing e John M. Towsend, “Bridging the Common Law Civil Law Divide in Arbitration”. Hughes Hubbard. Disponível em: <https://www.hugheshubbard.com/news/bridging-the-common-law-civil-law-divide-in-arbitration>

[6] John M. Townsend, “Clash and Convergence on Ethical Issues in International Arbitration”, 36 U. Miami Inter-Am. L. Rev. 1 (2004), p. 4. Disponível em: <http://repository.law.miami.edu/umialr/vol36/iss1/2>

[7] Meredith, Puschmann, “Notes on the Cultural Dimension of International Commercial Arbitration”, p.5

[8] Dr. Andreas Respondek, “How Civil Law Principles Could Help to Make International Arbitration Proceedings More Time and Cost Effective”. Praguerules.com. Disponível em: <http://praguerules.com/upload/iblock/af3/af3352da3709e3340951a38dfe8d7f61.pdf>. Acesso em: 22/12/2018.

[9] Jones Day, “The Prague Rules on the Taking of Evidence: The "Civil War" in the "Common Law" World of Arbitration?”. Resumo de evento. 13/11/2018. Disponível em: <https://www.jonesday.com/the-prague-rules-on-the-taking-of-evidence-the-civil-war-in-the-common-law-world-of-arbitration/>. Acesso em: 22/12/2018.

[10]Andrey Panov, “Why the Prague Rules may be needed?”. Thomson Reuters, Practical Law Arbitration Blog, 13/10/2018. Disponível em: <http://arbitrationblog.practicallaw.com/why-the-prague-rules-may-be-needed/>. Acesso em: 22/12/2018.

[11] Ben Giaretta, “The Prague Rules: the proactive arbitrator revisited”. Mishcon de Reya LLP, 19/12/2018. Disponível em: <https://www.mishcon.com/news/briefings/the-prague-rules-the-proactive-arbitrator-revisited>. Acesso em: 22/12/2018

[12] Michal Kocur, “Why Civil Law Lawyers Do Not Need the Prague Rules”. Disponível em:<http://praguerules.com/upload/iblock/a41/a41366c67308ea1286a4d3a3a3fde2a7.pdf>. Acesso em: 22/12/2018

[13] Guilherme Rizzo Amaral, “Prague Rules v. IBA Rules and the Taking of Evidence in International Arbitration: Tilting at Windmills – Part II”. Kluwer Arbitration Blog, 6/7/2018. Disponível em: <http://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2018/07/06/prague-rules-v-iba-rules-taking-evidence-international-arbitration-tilting-windmills-part-ii/>. Acesso em: 22/12/2018

[14] “2.3 The Arbitral Tribunal is encouraged to identify to the Parties, as soon as it considers it to be appropriate, any issues:(a) that the Arbitral Tribunal may regard as relevant to the case and material to its outcome; and/or (b) for which a preliminary determination may be appropriate.”

[15] “3.1 O Tribunal de Arbitragem tem o poder e é incentivado a desempenhar um papel ativo na prova dos fatos em litígio que julgar relevantes para a resolução do mesmo. O papel do Tribunal Arbitral, no entanto, não dispensará as Partes de cumprir o respetivo ônus da prova.”

[16] Klaus Peter Berger e Center for Transnational Law, “The Creeping Codification of the New Lex Mercatoria” (2nd edn, Kluwer Law International Aspen 2010) 3.

[17] Léonard Stoyanov, “Switzerland to Become More Attractive for International Arbitration: Act 2”. Kluwer Arbitration Blog, 8/11/2018. Disponível em: <http://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2018/11/08/switzerland-to-become-more-attractive-for-international-arbitration-act-2/>. Acesso em: 24/12/2018

[18] Siegfried Elsing e John Towsend explicit recognise this in “Bridging the Common Law Civil Law Divide in Arbitration”. Disponível em: <https://www.hugheshubbard.com/news/bridging-the-common-law-civil-law-divide-in-arbitration>. Acesso em: 23/12/2018


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